segunda-feira, julho 23, 2007

Entrevista com Norman Lebrecht - I

A indústria de discos clássicos faliu.

O jornalista inglês Norman Lebrecht, autor de O Mito do Maestro, responsabiliza artistas e empresários pelo declínio da música erudita
O inglês Norman Lebrecht, autor de dez livros polêmicos, entre os quais Quem Matou a Música Clássica?, é hoje o mais respeitado analista do mercado de gravações eruditas. Seu primeiro sucesso, The Maestro Myth (O Mito do Maestro), publicado em 1992, provocou grandes discussões entre os especialistas na obra dos compositores clássicos. Nele, Lebrecht, formado em psicologia e sociologia e colunista do jornal inglês The Daily Telegraph, dispara a metralhadora giratória contra músicos e empresários, os quais considera responsáveis pelo declínio, nos últimos anos, da audiência dos teatros de ópera e concertos. A editora Civilização Brasileira promete lançar O Mito do Maestro no Brasil em maio do próximo ano, com dados acrescentados pelo autor.


ÉPOCA: Por que a música clássica é fundamental?


Norman Lebrecht: Porque é fonte de enriquecimento espiritual da humanidade. Temos de protegê-la, assim como devemos proteger o meio ambiente – e, então, deixar alguma coisa para nossos filhos.


ÉPOCA: Por que está havendo uma debandada do público das salas de concerto?


Lebrecht: Pelo fato de a música estar sendo tratada de maneira perversa. Tudo nela, hoje, é previsível. E o pior: as pessoas vão a um concerto para ouvir exatamente aquilo que ouvem no CD.



ÉPOCA: Isso é ruim?



Lebrecht: Péssimo, pois representa a negação da própria música. A gravação é a fotografia de um momento. O regente Otto Klemperer dizia que ouvir um disco seria o mesmo que levar uma foto de Marilyn Monroe para a cama.



ÉPOCA: Para o compositor Gustav Mahler, a música não deveria ser executada duas vezes da mesma maneira. Os regentes de hoje seguem essa linha?



Lebrecht: Não. Eles são uns robôs. Ensaiam as orquestras muito bem, adquirem segurança técnica e o que produzem nos concertos é pura coreografia.



ÉPOCA: Como está a profissão de regente neste fim de século?



Lebrecht: Tornou-se falsa.



ÉPOCA: No quê?



Lebrecht: O compositor, ao terminar uma obra, perde o controle desse “monstro” criado. E tem de delegar poderes a um indivíduo que, na maioria das vezes, é incapaz até mesmo de tocar decentemente um instrumento. Este se coloca à frente de uma orquestra e balança uma batuta, criando, aos olhos do público, uma imagem falsa de liderança.



ÉPOCA: A decadência da imagem do regente tem a ver com o declínio de público?


Lebrecht: Sim. Na última década, o público deixou de considerar o regente como herói. Por isso, começou a gravitar em torno da figura do compositor. Hoje, não existe um maestro que, com seu nome, consiga lotar o Festival Hall, de Londres, ou o Carnegie Hall, de Nova York.




ÉPOCA: Em que os regentes erraram para que as coisas chegassem a esse ponto?


Lebrecht: Eles deixaram de ser diretores musicais, apesar de manter o título. Passam somente dez ou 12 semanas por ano trabalhando com a orquestra sobre a qual supostamente devem exercer liderança. Às vezes, chegam ao local do concerto no mesmo dia da apresentação. Mal acabaram de aprender a partitura no avião. A presença deles não acrescenta nada à vida dos músicos ou à da platéia. Os regentes são pessoas muito ocupadas, que lidam bem com dinheiro. Têm de falar várias vezes por dia com seus brokers para decidir que ações comprar ou vender. Alguns, como Lorin Maazel, têm até jato particular.



ÉPOCA: Maazel é um talento fenomenal e, como Daniel Barenboim, possui uma memória privilegiada.



Lebrecht: Os dois apresentam semelhanças, mas Maazel tem uma técnica de regência muito superior à de Barenboim. Maazel é – como Barenboim nunca foi ou será – um grande ensaiador. Ele consegue qualquer coisa de uma orquestra.



ÉPOCA: Quantos CDs gravados por uma orquestra como a Filarmônica de Berlim precisam ser vendidos para que a gravadora não tenha prejuízo?



Lebrecht: Em torno de 50 mil, dois terços deles ainda no primeiro ano. Isso somente para empatar.



ÉPOCA: E nem isso estão conseguindo?



Lebrecht: Não. Barenboim, por exemplo, é um fracasso comercial. Uma sinfonia de Anton Bruckner gravada por ele vendeu somente 900 cópias nos primeiros nove meses.



ÉPOCA: Então, por que se grava?



Lebrecht: Não se grava. Chegamos ao fim da linha.



ÉPOCA: Para o senhor, quem é hoje o Pelé dos regentes?



Lebrecht: Valery Gergiev e Mariss Jansons. Eles são goleadores e não jogam pelo empate, como a maioria.



ÉPOCA: Em um de seus livros, o senhor critica os três tenores, Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti , e os responsabiliza pelo “gatilho” que detonou o processo de loucura comercial no mundo da música clássica. Como ocorreu o casamento entre eles?




Lebrecht: Para celebrar a Copa de 1990, eles cantaram juntos, pela primeira vez, em Roma, acompanhados por Zubin Mehta. Foi uma Copa do Mundo muito fraca, cheia de resultados 0 a 0. Ninguém fazia fé nessa união. Nem mesmo os tenores. A gravadora Decca investiu pouco no projeto e pagou em torno de US$ 170 mil a cada cantor. E, o mais importante, eles não tiveram direito a royalties pela comercialização de CDs ou vídeos. A coisa explodiu, e a Decca vendeu 11 milhões de CDs. Compreensivelmente, os tenores se arrependeram. Com o lucro do projeto, a Decca pôde investir em repertório e artistas novos. Na Copa de 1994, os tenores disseram: “Desta vez, o preço é diferente”. Fizeram um leilão entre as companhias de discos e a Decca foi recusada por Plácido Domingo, ainda ressentido com o mau negócio realizado em 1990. A Warner acabou levando o projeto com um lance de US$ 16 milhões, a ser dividido entre os três, além dos royalties. Foram vendidos 12 milhões de discos e mais uns 2 milhões de vídeos. Com a exorbitância paga aos cantores, os lucros se foram antes mesmo de o projeto começar. E não sobrou nada para ser reinvestido. Na Copa de 1998, os três receberam outros US$ 16 milhões. Mas desta vez não venderam tanto. A Warner e a PolyGram – hoje Universal – perderam uma fortuna e levaram o resto da indústria à falência. Esse é somente o lado financeiro, responsável pela extinção da indústria fonográfica.




ÉPOCA: Mas isso não gerou um aumento enorme de audiência para o mundo da ópera?




Lebrecht: Foi exatamente o que os três disseram. Mas, na verdade, ocorreu o contrário. A partir do momento em que começaram a se apresentar juntos, dois deles (Luciano Pavarotti e José Carreras) pararam progressivamente de cantar ópera. As pessoas só podiam assistir a Plácido Domingo.



ÉPOCA: O que há de errado em ganhar US$ 1 milhão para cantar no parque?



Lebrecht: Acredito que 20 récitas em um mês a US$ 30 mil cada uma seria mais que suficiente. Não tenho dúvida de que o grande tenor Enrico Caruso acharia esse cachê maravilhoso.




ÉPOCA: Se compararmos os salários de maestros com os de jogadores de futebol, como o português Figo, comprado do Barcelona pelo Real Madrid por US$ 56 milhões, até que os regentes não ganham tanto assim.



Lebrecht: Os músicos de algumas orquestras é que são os Figos. E os regentes, uns beques de terceira categoria, que não marcarão jamais um gol (risos).




ÉPOCA: Quem são os responsáveis pelas leis que definem o mercado de música?



Lebrecht: Em sua grande maioria, músicos falidos ou homens de negócios malsucedidos. Hoje em dia, não é uma boa recomendação a de tornar-se responsável por uma orquestra. Existem poucas exceções, naturalmente. Em meu livro Quem Matou a Música Clássica? dedico um capítulo a essas pessoas.



ÉPOCA: Qual é o futuro e a influência da internet na música clássica?




Lebrecht: Esse é o grande problema das companhias de disco para o futuro. Em meses – não em anos – estaremos vivendo uma nova era. Poderemos escolher entre assistir a um balé em Nova York ou ouvir a Filarmônica de Viena. Ao vivo e de graça. E ainda poderemos gravar para ver depois.




ÉPOCA: Existe alguma saída para a indústria fonográfica?




Lebrecht: Não. Acabou. As últimas empresas estão fechando as portas. Artistas estão perdendo contratos; produtores, engenheiro de som, gente que dedicou toda a vida a essa área está sendo mandada embora. O processo é terrível e cruel. Há quatro anos, quando escrevi Quem Matou a Música Clássica?, existiam seis grandes companhias de disco. Hoje temos somente duas e não durarão muito. São dinossauros que olham ao redor e não mais encontram árvores altas. Por isso morrerão.




ÉPOCA: Quem são os Karajan do futuro?




Lebrecht: Não haverá mais Karajan. Ele foi um anacronismo criado pelo Terceiro Reich. A era dos ditadores acabou.




ÉPOCA: Um músico extraordinário é necessariamente uma boa pessoa?
Lebrecht: Não. Como a água, a música é amoral. Tanto se pode usá-la para salvar
vida de uma pessoa como para afogá-la.


Perfil:

Norman LebrechtDados tem 59 anos. É sociólogo, psicólogo e jornalista. Lançou dez livros sendo os mais recentes o The Complete Companion to 20th Century Music -“O guia completo da música do século XX” - e o Maestros, masterpieces and madness - "Maestros, obras-primas e loucura".

Fonte: Revista Época em 16 de outubro, 2000.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial